Páginas

domingo, 11 de maio de 2014

gabinete dramatúrgico on-line

Em face aos últimos acontecimentos,
de Raysner de Paula

Ela vomita:
Só Deus sabe o quanto eu estou aliviada e satisfeita
com esse nosso investimento, essa nossa mobilização, esse nosso empenho
ISSO DA GENTE
já ter adiantado a coisa toda, essas coisas, esta questão
A DA FUNERÁRIA
Santa antecipação!
Por que
NÃO!
imagina
nós 4 sermos pegos, assim, de surpresa, num dia como hoje
NOITE DE NATAL
quem gosta de ser surpreendido assim?
NOITE DE NATAL
EM PLENA CEIA
REUNIÃO DE FAMÍLIA
FESTEJO
Quem?
Aposto que nem esse rapazinho,
Este, o da funerária, aquele, que nos atendeu mais cedo, o que nos avisou
nem ele.
O que ligou pra um por um
Até isso eles
SANTA FUNERÁRIA!
Nos pouparam
Dos avisos, dos telefonemas, do
‘oi, nosso pai, o teu pai, o meu pai, não está bem, nosso pai, o meu pai, o teu pai, ele, você sabe, eu digo, ele já não estava muito bem, há tempos, o médico nos precaveu, nós já sabíamos, nós já nos resguardávamos, nosso pai, hoje, nessa noite de natal, às vinte e três horas e vinte cinco minutos, o teu pai, o meu pai, desculpa te ligar assim, mas é que aconteceu algo, ele, sim, é urgente, mais que um acidente, você sabe: o nosso pai morreu.”
Eles nos pouparam! Esses rapazinhos, os da funerária, desses telefonemas, desses dizeres, em plena noite de natal
QUEM GOSTA DE SER SURPREENDIDO ASSIM?
Nem eles, esses rapazinhos
aposto que eles nos xingaram horrores. Por trás dessas carinhas prestando suas melhores e empacotadas e comercializadas e industrializadas e ensaiadas condolências. há de existir por de trás delas caretas horríveis para nós, há a ira das expressões do momento que tiveram que interromper suas ceias, os seus festejos, sua noite de natal, para comunicar a
NÓS,
OS FILHOS
Que mensalmente permitimos descontar dos nossos salários, dos nossos suados salários, essa quantia, esse tanto de dinheiro besta que fazia lá alguma falta, mas que
NÓS,
OS QUATRO IRMÃOS
Sabíamos que esse dinheiro pagava este alívio, esta espécie de missão cumprida, este gosto do AINDA BEM, FIZ O QUE PUDE, NÃO TEMOS MAIS COM O QUE NOS PREOCUPAR está tudo acabado
Nós nem mais precisaremos nos ver!
Nem mais precisaremos fingir afeto entre nós
Esse afeto imposto por esse laço que sem querer nos une, nós no fundo sentimos isso, falamos isso com os olhos, nós exalamos esse pensamento, ai se nós pudéssemos dizer, se pudéssemos festejar, cada um com a dívida funeral já paga, a não necessidade de um velório.
(o nosso pai não tinha amigos, não temos outros parentes, nada.)
(há apenas esse vazio e a morbidez dessa sala que na verdade não é nada demais, é só o peso de tantas outras mortes comunicadas aqui, nessa sala, só isso, o peso de tantas outras mortes, não é nada nosso)
Não temos e não vamos nos preocupar.
Nossos boletos estão pagos. Nosso compromisso está em dia. Nós estamos bem.


EU ESTOU BEM.

O OUTRO FILHO: Tem certeza?
A IRMÃ DO MEIO: Bebe essa água.
ELA: Eu estou bem.
O IRMÃO MAIS VELHO: isso DEVE ser alguma porcaria com a qual você andou se entupindo...
ELA: deve.
A IRMÃ DO MEIO: Deve ter sido o susto.
ELA: deve também
O OUTRO FILHO: Você se assustou?
A IRMÃ DO MEIO: Parece que aqui não demora.
ELA: Eu me assustei um pouco, eu já estava deitada, estava quase dormindo, eu.
Eu não sei.
A gente ensaiou isso tudo.
Eu ensaiei isso tudo.
Quando me dessem a notícia eu faria uma cena.

Ela faz uma cena:
Eu tenho uma lembrança do meu pai. Uma lembrança tão bonita.