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sábado, 26 de janeiro de 2013

conversa para ir-se longe II

Eu vou morrer, disse a menina.
Claro que vai, respondeu o aviador.  
Vou morrer antes do senhor - e lhe explicou - Vou morrer antes de ter metade desse tanto de vida vivida que o senhor carrega dentro do peito e que daqui eu vejo que pesa muito, que pesa um monte, pesa nos seus olhos cansados e no passo arrastado. Ai, como pesa! Vou morrer antes porque, ao contrário do seu peito, o meu peito é caixinha pequena, dessas feitas pra se guardar um tiquinho só de ar. Um tantinho assim - um quase nada. Por isso é bom eu não falar muito, assim, pelos cotovelos, pra não gastar muito do que eu tenho pouco. E isso desde pequena...

...Mas eita danação! Coisa besta dos diabos. Logo eu ter um prazo de vida tão pequeno e essa vontade de sei lá o que tão grande apertada dentro do meu peito, junto com um pouquinho assim de ar. A mãe sempre me diz que se eu deixar essa vontade de lado, essa bobagem de gente besta pra lá, eu bem que conseguiria viver  menos no sufoco, teria mais ar guardado lá, mas eita ideia besta esta da minha mãe (que ela não nos escute), mas você não acha?

Tem também as minhas pernas que, coitadas!, vivem ansiosas pra trilhar um caminho que vá para o oposto desta minha sina que, sei lá porque, foi ser logo minha. Valha-me Deus! Que ninguém nos escute (ai, ai,ai, não gosto nem de pensar nisso)(mas já que pensei, deixa eu te contar), vai que Deus se enganou e nada disso que me cabe tinha de ser meu? Nunca se sabe...Eita danação.  


quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

conversa besta pra ir-se longe

- No que você está pensando?
- Em coisa nenhuma.
- Isso deve ser coisa de difícil pensação.
- Coisa nenhuma.
- Olha sua cara...
- Que tem ela?
- É cara de gente com pensamento grave, de pensação difícil.
- Para de olhar pra ela.
- Cê podia me ensinar.
- Te ensinar o que?
- Pensar em coisa nenhuma.
- Você já é gente pequena.
- Que é que tem?
- Não carece de aprender isso não. Já é do seu natural essa coisa nenhuma nas ideias.
- Coisa de gente grande.



terça-feira, 22 de janeiro de 2013


CENA I:
Uma mulher sozinha em uma sala de espera de um CTI. Tudo muito branco, limpo e arrumado. O silêncio que recai sobre o lugar é quebrado pelo ‘tic-tac’ dos ponteiros de um relógio instalado em uma das paredes. A mulher espera. Talvez, chore. Mas chore de forma contida, quase imperceptível, quase um não choro. Talvez um ou dois soluços e mais nenhum barulho além do som produzido pelo relógio...
Até que entra Marta e rompe com toda esta ausência de cor e de sons da cena. Ao entrar, ela passa pela mulher sem percebê-la e tenta avançar para o CTI, mas a outra a detém.  

A MULHER: Pois não?
MARTA: Com licença senhora, eu preciso passar.
A MULHER: Passar pra onde?
MARTA: Passar pra lá.
A MULHER: Pra lá não pode.
MARTA: Que não pode o que.
A MULHER: Tenta então.
MARTA: (é quase uma ameaça) Vamos lá, minha senhora...
A MULHER: Eu chamo a segurança.
MARTA: Chama o escambau.
A MULHER: Claro que chamo.
MARTA: E você, como se chama?
A MULHER: Ele nunca te disse?
MARTA: Acho que a gente nunca teve muito tempo.
A MULHER: Ah, não?
MARTA: Uma pena.
A MULHER: O escambau!  
As duas se encaram por um lampejo de segundo.

MARTA: Então você é a.../
A MULHER: A mulher dele.
MARTA: Prazer “mulher dele” (apresenta-se) Marta!
A MULHER: Eu sei.
MARTA: Ele já falou de mim?
A MULHER: Rá! Como se precisasse.
MARTA: Então você deve saber também que eu preciso falar com ele!
A MULHER: Falar com ele?
MARTA: Com o próprio.
A MULHER: Ah, mas hoje não vai dar não.
MARTA: Eu preciso.
A MULHER: Será que precisa mesmo?
MARTA: Claro que preciso.
A MULHER: Precisa nada.
MARTA: Preciso!
A MULHER: Não precisa!
Nó.

MARTA: Olha só, “mulher dele”... É esse seu nome, não é?
A MULHER: Pra você, por hoje, é.
MARTA: Eu juro: é só uma palavrinha.
A MULHER: Que inferno! Será que nem morrendo meu marido vai ser só meu?
MARTA: A senhora está gritando.
A MULHER: E você com isso?
MARTA: Aqui é um CTI, minha senhora, se controle.
A MULHER: (a seguir, um ataque histérico) Então a senhora “quero entrar aí” agora vem dar uma de – sabe aqueles quadros que tem em todo hospital, com uma enfermeira pedindo silêncio com o dedo indicador encostado nos lábios assim ó (demonstra) Então! – Agora a senhora vai fazer a linha “pedindo silêncio na porta do CTI”. Porque finalmente  caiu sua ficha, não é? Que aqui é um CTI! Que ele, o meu marido está lá dentro, no CTI. E que CTI, por ser CTI, não é um lugar qualquer. É um CTI! C – T – I.  E, assim, não sei se você sabe, mas CTI não é lugar da gente ir assim, entrando. Não! CTI é lugar sério. Lugar limpo. Branco. Tudo branco. Tudo muito branco. Tudo muito limpo - sabe como? Tão limpo e tão branco que chega a doer. Doer os olhos, sabe como? De matar de inveja qualquer dona de casa fissurada. Porque nunca (NUNCA!) haverá um lugar tão puro como um CTI. Praticamente uma amostra do céu, porque o céu deve ser assim, limpo, branco. Esterilizado. É bom que ele, meu marido, aproveite sua chance de ter uma provinha do céu, porque sinceramente não tem santo que vai ter misericórdia daquela alma. Vai direto pro inferno. E inferno, você sabe, não tem nada de branco, limpo, esterilizado. Não é assim, como um CTI, porque CTI é um céu... Um céu não, porque meu marido não vai pro céu, ele vai pro inferno, direto pro inferno, pra aonde o diabo o carregue, a porca torça o rabo e onde faça muito, mais muito calor – porque ele, meu marido – odeia calor. Odeia calor. Um fresco! Sabe? Por causa disso a gente nunca foi à uma praia... Nunca! Eu sempre fui louca com praia. Louca! Vinte anos casada com este homem e ele nunca me levou à praia! Nunca uma Guarapari, um Cabo Frio... Nunca! E por que eu nunca fui sozinha? Não sei, vou perguntar minha analista, minha analista deve saber. Porque minha analista sabe de tudo. Tudo. Ô mulher pra saber, aquela baixinha! Sabe que eu nunca fui feliz e que ele – meu marido – vai pro inferno, onde o calor é terrível, ainda mais pra ele que odeia calor e nunca me levou à praia. (Pausa brusca) Vocês já foram à praia?
MARTA: (estarrecida) Sim, tudo começou em uma praia.
A MULHER: Como?
Instante.
MARTA: Toma uma água.
Ela toma uma água.
A MULHER: Graças a Deus o médico disse que ele não passa de hoje.
MARTA: Hoje?
A MULHER: Poucas horas.
MARTA: Meu Deus!
A MULHER: Pois é...
MARTA: Sempre tão forte... Quase um touro. Quem diria...
A MULHER: É essa vida que ele escolheu levar...
MARTA: Você sabe se ele trouxe o computador?
A MULHER: (...)
MARTA: (...)
A MULHER: (...)
MARTA: Um tablet?
A MULHER: (...)
MARTA: Um bloquinho e uma caneta?
A MULHER: Brincadeira mais sem graça, viu...
MARTA: Olha pra minha cara e vê se eu estou brincado!
A MULHER: A vida tem cada uma.
MARTA: Nem me diga.
A MULHER: Marta, não é?
MARTA: Sim, Marta. E você?
A MULHER: Continuo sendo a “mulher dele”.
MARTA: E a “mulher dele” não tem nome?
A MULHER: Não importa muito agora.
MARTA: Pois a mim importa. Se seu marido morrer ali dentro, como é que eu vou ficar?
A MULHER: Ah não! Olha aonde essa indecência foi chegar.
MARTA: Olha só, eu entendo sua revolta, mas eu tenho pouco tempo...
A MULHER: Que pouco tempo, minha filha? Seu tempo acabou há ó...
MARTA: Mas não o do nosso filho!
A MULHER: Que filho?
MARTA: O que o teu marido me fez!
A MULHER: Como?
MARTA: Minha querida, nós duas já somos adultas! Não precisamos de detalhes...
A MULHER: Não acredito...
MARTA: Preciso falar com ele sobre isso antes que ele morra.
A MULHER: Eu que preciso falar com ele sobre isso antes que ele morra.
MARTA: Foi no nosso último encontro, no quarto de vocês!
A MULHER: Na minha cama?
MARTA: Com você do lado!
A MULHER: Santo Deus.
MARTA: Naquela noite ele abriu o computador e me fez um filho. Até aí tudo bem! A gente está aí pra isso mesmo! Mas acontece que em alguns parágrafos adiante ele acrescentou que a gravidez era de risco!
A MULHER: De risco?
MARTA: Desgraçou a minha vida em menos de duas páginas.
A MULHER: Como ele pode?
MARTA: Preciso dar um jeito nisso... Salvar pelo menos meu menino!
A MULHER: É um menino?
MARTA: Não tenho certeza. Ele não continuou a escrever. Fiquei lá, parada no tempo, em uma das várias versões da história que ele vinha escrevendo, com uma gravidez de risco...
A MULHER: Ele não continuou?
MARTA: Não continuou...

CENA II
Sala de parto: Médicos realizam o (complicado) trabalho de parto de Marta. A “Mulher” está no local, com laptop ligado, digitando freneticamente. Marta grita de dor.

A MULHER: Vai dar certo, Marta! Estamos quase lá.
MARTA: Pelo o amor de Deus, termina isso rápido!
A MULHER: É que eu nunca fiz isso antes.
MARTA: Não precisa de muito. Só termina...
A MULHER: Calma! “Ela grita”
Marta grita.
MARTA: Termina!
A MULHER: (lendo o que digita, ainda freneticamente) “A dor de Marta chegou ao ápice. Naquele instante, ela sentiu que sua alma seria rasgada, dilacerada, feita em mil pedaços”.

Marta grita, Marta chora. Ai que dó da Marta!
MÉDICO: O que é que a senhora está fazendo?
A MULHER: Acabando com o sofrimento da Marta!
MÉDICO: Você vai matá-la!
A MULHER: Claro que não.
UMA DAS ENFERMEIRAS: Isso é recalque de mulher traída. Conheço bem.
MARTA: (sem mais um pingo de força) Então é isso... Vingança?
A MULHER: Não! Eu juro que não! Eu só preciso manter a coerência da obra do meu marido. A poesia do texto dele, a potência das imagens criadas em suas narrativas, é só isso. Juro que não é nada pessoal. Eu juro. Eu só preciso me concentrar...

Num lampejo do tempo, vejam só que sensacional: a cena do parto desaparece, e fica por ali apenas a MULHER digitando freneticamente, iluminada pela luz do laptop. Eis que vemos o MARIDO surgir atrás dela.

MARIDO: (lê) “E naquele instante – Silêncio. Era como se o nada se fizesse presente e transformasse  tudo ali, naquela sala... A dor de Marta dilacerou sua alma e parou os ponteiros do relógio, o pulsar dos corações, as gotas de suor... e fez de tudo um único e pesado silêncio.” Que isso?
A MULHER: Um instante... Preciso salvar o bebê.
MARIDO: Que bebe?
A MULHER: O menino!
MARIDO: Você está ficando maluca! Para de mexer nisso.
A MULHER: A Marta precisa de mim.
MARIDO: Para que isso não é brincadeira. É coisa séria.
A MULHER: Eu sei.
MARIDO: Vamos voltar a dormir.
A MULHER: A Marta me pediu...
MARIDO: Isso é esse seu remédio forte! Já disse que você tem que parar...
A MULHER: O bebê...
MARIDO: Adalgisa?!
A MULHER: Um instante só.
MARIDO: Para de mexer no meu trabalho. Isso é sério.
A MULHER: Você precisava ver o desespero da Marta.
MARIDO: Você está louca, Adalgisa. Já disse, para de estragar minha históra.
A MULHER: Eu prometi pra Marta.
MARIDO: Que Marta?
A MULHER: A sua Marta!
MARIDO: Que minha Marta?
A MULHER: Esta Marta.
A mulher aponta para o laptop.
MARIDO: (Lê) “Marta, desfalecida, parecia sorrir. Uma lágrima escorreu dos seus olhos enquanto ela dava um último suspirou ao ouvir o choro do seu menino romper com o que parecia infinito.” Meu Deus! Você... Você... O que você fez?
A MULHER: Salvei a criança.
MARIDO: A Marta?!
A MULHER: A Marta...
MARIDO: Você matou a Marta!
A MULHER: Nós podemos criar o menino.
MARIDO: Assassina.
A MULHER: Melhor que a Marta.
MARIDO: A Marta não merecia.
A MULHER: Eu sempre quis ter um menino.
A MULHER: Sua louca!
A MULHER: Já pensou em um nome pra ele?
MARIDO: A Marta era uma mulher boa. Honesta.
A MULHER: Dalgoberto é um nome bom, o que você acha?
O marido se agarra ao laptop e chora.
Chora feito o menino que ali, na sala de parto, já sente falta da mãe.
A MULHER: Lindomar também não é de todo mal. Você gosta?

sábado, 5 de janeiro de 2013

de mãe para filho


F, para filho.
M, para mãe.

F: Eu vou!
M: Come alguma coisa.
F: Você viu onde eu as coloquei?
M: Fiz umas coisas, uns bolos, trouxe uns pães.
F: Eu preciso delas.
M: Não sai sem comer.
F: Minhas chaves.
M: Tá tudo quentinho.
F: Você não viu?
M: Ontem seu irmão veio-me dizer que vai embora.
F: Deixei aqui.
M: Sabe o que eu pensei quando ele me disse isso?
F: Mãe, eu estou atrasado.
M: Que qualquer dia desses eu é quem vou embora.
F: Come alguma coisa.
M: Porque a gente se farta.
F: um bolo, um pão.
M: Porque tem uma hora que a gente que é mãe também se farta.
F: Não sai sem comer.
M: Você viu onde eu as deixei?
F: Tá tudo quentinho.
M: As minhas chaves. Eu as coloquei aqui.
F: Uns bolos, uns pães.
M: Eu vou!