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sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Prólogo


“(...) Vem, me dê a mão! A gente agora já não tinha medo. No tempo da maldade, acho que a gente nem tinha nascido”
Chico Buarque
Maria: Do começo, João.
João: Quando Maria me conheceu...
Maria: João já contava quatro anos de idade...
João: Eu era um meninão.
Maria: Não me lembro disso.
João: A mãe que falou.
Maria: Falou nada, João.
João: Claro que falou.
Maria: Falou que dia?
João: Dia desses...
Maria: João...!
Respiro e...
João: Tudo de novo! Do começo, Maria...
Maria: Quando João me conheceu.
João: Eu já contava quatro anos de idade.
Maria: João já era um meninão.
João: Viu? Não disse?
Maria: Disse o que?
João: Que eu era um meninão.
Maria: Disse sem saber!
João: Claro que eu sabia.
Maria: Sabia nada, João. Você só contava quatro anos! E quando a gente conta quatro anos não tem como depois a gente saber se o que a gente conta de quando tinha quatro anos é verdade ou coisa da nossa cabeça.
Respiro e...
Maria: Do começo!
Brevíssimo silêncio.
João: As coisas eram mais simples, Maria.
Maria: Porque você só contava quatro anos, João.
João: Isso! Foi quando eu só contava quatro anos que a parteira gritou:
Maria: Corre João, vem ver a Maria!
João: Você lembra?
Maria: Nadica de nada! Eu tinha acabado de nascer.
João: E aí eu corri...
Maria: Correu, correu, correu!
João: Corri como nunca tinha corrido na vida.
Maria: Pulou a cerca do quintal sem ver.
João: Atropelei o cachorro velho.
Maria: Se estrepou todo nas roseiras da mãe, mas fez que nem sentiu.
João: Pisei nuns cinco pés de couve da horta.
Maria: De um salto só, pulou a janela do quarto da mãe.
João: E lá estava você

Maria: Pequenininha!
João: Mais pequenininha do que agora.
Maria: Miudinha, miudinha, miudinha!
João: A mãe disse que você veio antes do tempo.
Maria: Disse nada!
João: Disse sim.
Maria: Disse quando?
João: Dia desses!
Maria: João!
João: Maria veio antes do tempo. Igual manga verde que despenca do pé antes de amadurecer. Mas pra mim ela não veio antes do tempo não. Demorou foi é muito pra chegar. Naquele tempo, que nem faz tanto tempo, nem dormir eu dormia de tanta vontade de ver a Maria. Ficava sentado, olhando pra mãe, com os olhos de menino aguado. E eu gostava tanto daquilo. Da mãe, da Maria dentro da mãe e de uma brisa faceira que passava lá em casa todo fim de tarde e roçava nossos rostos. 

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

#2

João: Tô com tanta sede que beberia um rio!
Maria: Tudo?
João: Tudinho!
Maria: Nossa mãe!
João: Nossa mãe o que?
Maria: É água demais, João!
João: E o que é que tem?
Maria: Você ia ficar com uma barriga do tamanho do mundo!
João: Aí o mundo ia caber em mim! Já pensou?
Maria: Pensou no que?
João: No mundo!
Maria: Eu nunca pensei nisso não.
João: Eu queria devorar o mundo!
Maria: Nossa mãe!
João: Nossa mãe o que?
Maria: Já pensou?
João: Pensou no que?
Maria: Num passarinho!
João: Que é que tem um passarinho?
Maria: É um passarinho que você não devorou quando devorou o mundo!
João: Pior que não vai caber mais nada no meu barrigão!
Maria: Nem o passarinho?
João: Nem ninguém.
Maria: O passarinho é uma passarinha!
João: Mas não cabe também!
Maria: E ela saiu pra buscar comida para os seus pequenos...
João: Que é que eu faço?
Maria: Aí, quando voltou, você tinha devorado o mundo com tudo!
João (preocupado): Até os pequenos!?
Maria: Tudo no seu barrigão!
João: Que é que ela vai fazer?
Maria: Bicar o seu barrigão!
João: Mas não pode não!
Maria: Mas mãe é mãe e você sabe como é!
João: Sei não!
Maria: Então eu vou te contar!
João: Não sei se eu quero saber!
Maria: Ela vai bicar o seu barrigão para tentar salvar os pequenos!
João: E eu vou estar tão grande, mas tão grande, que vou parecer um balão!
Maria: Um balão-zão!
João: Do tamanho do mundo!
Maria: E quando ela der a primeira bicadinha...
João: Não quero saber não!
Maria: Mãe é mãe e você sabe como é!
João: Na primeira bicadinha...
Maria: Era uma vez o balão-zão!
João: Tudo pelos ares.
Maria: Tudo: mundo, barriga e os passarinhos da passarinha!
João: Esse negócio de querer devorar o mundo é muito perigoso. Quero isso mais não!
Maria: Nossa mãe!

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O que?


quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Pilar e Percival

Percival: E o pai?
Pilar: Pai já vem.
Percival: Vem de onde?
Pilar: Vem do lado de lá, primeira esquerda, mais longe um pouquinho, depois da curva, perto da árvore, em cima do morro, que desce na entrada do lugar nenhum.
Percival: Isso é longe?
Pilar: Perto do nunca mais!
Percival: Que é longe?
Pilar: Nem o trem para lá!
Percival: Nem o trem?
Pilar: Coisa nenhuma!
Percival: Nossa Senhora!
Pilar: Essa talvez vá.
Percival: Mas não vai de trem.
Pilar: De trem não.
Percival: Tadinha da santa... vou acender uma vela pra ela.

(...)
Percival: Ela deve andar muito.
Pilar: Deve.
Percival: Já que não vai de trem, ela deve andar dia e noite sem parar.
Pilar: Muito, muito, muito.
Percival: Esta vela é pra alumiar o caminho da santa e seus passos no escurinho desta noite. Amanhã eu acendo outra. E depois, mais outra. Outra...Outra.
Pilar: A santa vai ficar satisfeita com você.
Percival: E o pai?
Pilar: O pai também!
Percival: Mas como é que o pai vai ficar sabendo.
Pilar: A santa conta pra ele.
Percival: A santa conversa com o pai?
Pilar: Deve conversar. O pai é bom de prosa.
Percival: Hum...
Pilar: Agora vai pra sua cama.
Percival: E quantas noites gasta pra chegar lá?
Pilar: Lá onde.
Percival: No lugar onde o pai tá?
Pilar: Disso eu não sei não.
Percival: Você devia saber! Como é que eu vou saber que já não precisa acender vela pra alumiar os caminhos da santa. Nossa Senhora. Vai ser uma confusão das grandes se eu deixar a santa no escuro. 

(...)

sábado, 6 de outubro de 2012

bem pra lá

De certa forma, ele sabia que não haveria outro dia além daquele dia. Por isso, segurou firme a mão dela e juntos correram. Correram, mas correram muito mesmo.  Correram tanto que nenhuma palavra foi capaz de alcançar o coração daqueles dois. (Nenhuma, nenhuma, nenhuma.) Por isso eles, naquele dia, não souberam que nome dar para aquilo que, insistentemente, borboleteava dentro em seus peitos.