CENA
I:
Uma
mulher sozinha em uma sala de espera de um CTI. Tudo muito
branco, limpo e arrumado. O silêncio que recai sobre o lugar é quebrado pelo
‘tic-tac’ dos ponteiros de um relógio instalado em uma das paredes. A mulher
espera. Talvez, chore. Mas chore de forma contida, quase imperceptível, quase
um não choro. Talvez um ou dois soluços e mais nenhum barulho além do som
produzido pelo relógio...
Até
que entra Marta e rompe com toda esta ausência de cor e de sons da cena. Ao
entrar, ela passa pela mulher sem percebê-la e tenta avançar para o CTI, mas a
outra a detém.
A
MULHER: Pois não?
MARTA:
Com licença senhora, eu preciso passar.
A
MULHER: Passar pra onde?
MARTA:
Passar pra lá.
A
MULHER: Pra lá não pode.
MARTA:
Que não pode o que.
A
MULHER: Tenta então.
MARTA:
(é quase uma ameaça) Vamos lá, minha
senhora...
A
MULHER: Eu chamo a segurança.
MARTA:
Chama o escambau.
A
MULHER: Claro que chamo.
MARTA:
E você, como se chama?
A
MULHER: Ele nunca te disse?
MARTA:
Acho que a gente nunca teve muito tempo.
A
MULHER: Ah, não?
MARTA:
Uma pena.
A
MULHER: O escambau!
As duas se encaram por um lampejo
de segundo.
MARTA:
Então você é a.../
A
MULHER: A mulher dele.
MARTA:
Prazer “mulher dele” (apresenta-se)
Marta!
A
MULHER: Eu sei.
MARTA:
Ele já falou de mim?
A
MULHER: Rá! Como se precisasse.
MARTA:
Então você deve saber também que eu preciso falar com ele!
A
MULHER: Falar com ele?
MARTA:
Com o próprio.
A
MULHER: Ah, mas hoje não vai dar não.
MARTA:
Eu preciso.
A
MULHER: Será que precisa mesmo?
MARTA:
Claro que preciso.
A
MULHER: Precisa nada.
MARTA:
Preciso!
A
MULHER: Não precisa!
Nó.
MARTA:
Olha só, “mulher dele”... É esse seu nome, não é?
A
MULHER: Pra você, por hoje, é.
MARTA:
Eu juro: é só uma palavrinha.
A
MULHER: Que inferno! Será que nem morrendo meu marido vai ser só meu?
MARTA:
A senhora está gritando.
A
MULHER: E você com isso?
MARTA:
Aqui é um CTI, minha senhora, se controle.
A
MULHER: (a seguir, um ataque histérico)
Então a senhora “quero entrar aí” agora vem dar uma de – sabe aqueles quadros
que tem em todo hospital, com uma enfermeira pedindo silêncio com o dedo
indicador encostado nos lábios assim ó (demonstra)
Então! – Agora a senhora vai fazer a linha “pedindo silêncio na porta do CTI”.
Porque finalmente caiu sua ficha, não é?
Que aqui é um CTI! Que ele, o meu marido está lá dentro, no CTI. E que CTI, por
ser CTI, não é um lugar qualquer. É um CTI! C – T – I. E, assim, não sei se você sabe, mas CTI não é
lugar da gente ir assim, entrando. Não! CTI é lugar sério. Lugar limpo. Branco.
Tudo branco. Tudo muito branco. Tudo muito limpo - sabe como? Tão limpo e tão
branco que chega a doer. Doer os olhos, sabe como? De matar de inveja qualquer
dona de casa fissurada. Porque nunca (NUNCA!) haverá um lugar tão puro como um
CTI. Praticamente uma amostra do céu, porque o céu deve ser assim, limpo,
branco. Esterilizado. É bom que ele, meu marido, aproveite sua chance de ter
uma provinha do céu, porque sinceramente não tem santo que vai ter misericórdia
daquela alma. Vai direto pro inferno. E inferno, você sabe, não tem nada de
branco, limpo, esterilizado. Não é assim, como um CTI, porque CTI é um céu...
Um céu não, porque meu marido não vai pro céu, ele vai pro inferno, direto pro
inferno, pra aonde o diabo o carregue, a porca torça o rabo e onde faça muito,
mais muito calor – porque ele, meu marido – odeia calor. Odeia calor. Um
fresco! Sabe? Por causa disso a gente nunca foi à uma praia... Nunca! Eu sempre
fui louca com praia. Louca! Vinte anos casada com este homem e ele nunca me
levou à praia! Nunca uma Guarapari, um Cabo Frio... Nunca! E por que eu nunca
fui sozinha? Não sei, vou perguntar minha analista, minha analista deve saber.
Porque minha analista sabe de tudo. Tudo. Ô mulher pra saber, aquela baixinha!
Sabe que eu nunca fui feliz e que ele – meu marido – vai pro inferno, onde o
calor é terrível, ainda mais pra ele que odeia calor e nunca me levou à praia.
(Pausa brusca) Vocês já foram à
praia?
MARTA:
(estarrecida) Sim, tudo começou em uma praia.
A
MULHER: Como?
Instante.
MARTA:
Toma uma água.
Ela toma uma água.
A
MULHER: Graças a Deus o médico disse que ele não passa de hoje.
MARTA:
Hoje?
A
MULHER: Poucas horas.
MARTA:
Meu Deus!
A
MULHER: Pois é...
MARTA:
Sempre tão forte... Quase um touro. Quem diria...
A
MULHER: É essa vida que ele escolheu levar...
MARTA:
Você sabe se ele trouxe o computador?
A
MULHER: (...)
MARTA:
(...)
A
MULHER: (...)
MARTA:
Um tablet?
A
MULHER: (...)
MARTA:
Um bloquinho e uma caneta?
A
MULHER: Brincadeira mais sem graça, viu...
MARTA:
Olha pra minha cara e vê se eu estou brincado!
A
MULHER: A vida tem cada uma.
MARTA:
Nem me diga.
A
MULHER: Marta, não é?
MARTA:
Sim, Marta. E você?
A
MULHER: Continuo sendo a “mulher dele”.
MARTA:
E a “mulher dele” não tem nome?
A
MULHER: Não importa muito agora.
MARTA:
Pois a mim importa. Se seu marido morrer ali dentro, como é que eu vou ficar?
A
MULHER: Ah não! Olha aonde essa indecência foi chegar.
MARTA:
Olha só, eu entendo sua revolta, mas eu tenho pouco tempo...
A
MULHER: Que pouco tempo, minha filha? Seu tempo acabou há ó...
MARTA:
Mas não o do nosso filho!
A
MULHER: Que filho?
MARTA:
O que o teu marido me fez!
A
MULHER: Como?
MARTA:
Minha querida, nós duas já somos adultas! Não precisamos de detalhes...
A
MULHER: Não acredito...
MARTA:
Preciso falar com ele sobre isso antes que ele morra.
A
MULHER: Eu que preciso falar com ele sobre isso antes que ele morra.
MARTA:
Foi no nosso último encontro, no quarto de vocês!
A
MULHER: Na minha cama?
MARTA:
Com você do lado!
A
MULHER: Santo Deus.
MARTA:
Naquela noite ele abriu o computador e me fez um filho. Até aí tudo bem! A
gente está aí pra isso mesmo! Mas acontece que em alguns parágrafos adiante ele
acrescentou que a gravidez era de risco!
A
MULHER: De risco?
MARTA:
Desgraçou a minha vida em menos de duas páginas.
A
MULHER: Como ele pode?
MARTA:
Preciso dar um jeito nisso... Salvar pelo menos meu menino!
A
MULHER: É um menino?
MARTA:
Não tenho certeza. Ele não continuou a escrever. Fiquei lá, parada no tempo, em
uma das várias versões da história que ele vinha escrevendo, com uma gravidez
de risco...
A
MULHER: Ele não continuou?
MARTA:
Não continuou...
CENA
II
Sala
de parto: Médicos realizam o (complicado) trabalho de parto de Marta. A
“Mulher” está no local, com laptop ligado, digitando freneticamente. Marta
grita de dor.
A
MULHER: Vai dar certo, Marta! Estamos quase lá.
MARTA:
Pelo o amor de Deus, termina isso rápido!
A
MULHER: É que eu nunca fiz isso antes.
MARTA:
Não precisa de muito. Só termina...
A
MULHER: Calma! “Ela grita”
Marta grita.
MARTA:
Termina!
A
MULHER: (lendo o que digita, ainda
freneticamente) “A dor de Marta chegou ao ápice. Naquele instante, ela sentiu
que sua alma seria rasgada, dilacerada, feita em mil pedaços”.
Marta grita, Marta chora. Ai que
dó da Marta!
MÉDICO:
O que é que a senhora está fazendo?
A
MULHER: Acabando com o sofrimento da Marta!
MÉDICO:
Você vai matá-la!
A
MULHER: Claro que não.
UMA
DAS ENFERMEIRAS: Isso é recalque de mulher traída. Conheço bem.
MARTA:
(sem mais um pingo de força) Então é
isso... Vingança?
A
MULHER: Não! Eu juro que não! Eu só preciso manter a coerência da obra do meu
marido. A poesia do texto dele, a potência das imagens criadas em suas
narrativas, é só isso. Juro que não é nada pessoal. Eu juro. Eu só preciso me
concentrar...
Num lampejo do tempo, vejam só
que sensacional: a cena do parto desaparece, e fica por ali apenas a MULHER
digitando freneticamente, iluminada pela luz do laptop. Eis que vemos o MARIDO
surgir atrás dela.
MARIDO:
(lê) “E naquele instante – Silêncio.
Era como se o nada se fizesse presente e transformasse tudo ali, naquela sala... A dor de Marta
dilacerou sua alma e parou os ponteiros do relógio, o pulsar dos corações, as
gotas de suor... e fez de tudo um único e pesado silêncio.” Que isso?
A
MULHER: Um instante... Preciso salvar o bebê.
MARIDO:
Que bebe?
A
MULHER: O menino!
MARIDO:
Você está ficando maluca! Para de mexer nisso.
A
MULHER: A Marta precisa de mim.
MARIDO:
Para que isso não é brincadeira. É coisa séria.
A
MULHER: Eu sei.
MARIDO:
Vamos voltar a dormir.
A
MULHER: A Marta me pediu...
MARIDO:
Isso é esse seu remédio forte! Já disse que você tem que parar...
A
MULHER: O bebê...
MARIDO:
Adalgisa?!
A
MULHER: Um instante só.
MARIDO:
Para de mexer no meu trabalho. Isso é sério.
A
MULHER: Você precisava ver o desespero da Marta.
MARIDO:
Você está louca, Adalgisa. Já disse, para de estragar minha históra.
A
MULHER: Eu prometi pra Marta.
MARIDO:
Que Marta?
A
MULHER: A sua Marta!
MARIDO:
Que minha Marta?
A
MULHER: Esta Marta.
A mulher aponta para o laptop.
MARIDO:
(Lê) “Marta, desfalecida, parecia sorrir. Uma lágrima escorreu dos seus olhos
enquanto ela dava um último suspirou ao ouvir o choro do seu menino romper com
o que parecia infinito.” Meu Deus! Você... Você... O que você fez?
A
MULHER: Salvei a criança.
MARIDO:
A Marta?!
A
MULHER: A Marta...
MARIDO:
Você matou a Marta!
A
MULHER: Nós podemos criar o menino.
MARIDO:
Assassina.
A
MULHER: Melhor que a Marta.
MARIDO:
A Marta não merecia.
A
MULHER: Eu sempre quis ter um menino.
A
MULHER: Sua louca!
A
MULHER: Já pensou em um nome pra ele?
MARIDO:
A Marta era uma mulher boa. Honesta.
A
MULHER: Dalgoberto é um nome bom, o que você acha?
O marido se agarra ao laptop e
chora.
Chora feito o menino que ali, na
sala de parto, já sente falta da mãe.
A
MULHER: Lindomar também não é de todo mal. Você gosta?
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